Diferente de tantas outras, a minha família não registrou sua história em fotografias. Sei muito pouco a respeito de meus antepassados e só cheguei a conhecer os bisavós maternos.
De Olina, mãe do meu avô Sebastião, eu me recordo bem. Sempre que ia vê-la no Centro velho de Anicuns, precisava atravessar um jardim de plantas medicinais se quisesse me sentar no sofá que, milimetricamente, estava forrado por uma manta de retalhos. Ali, eu passava a tarde comendo lascas de queijo de trança, em geral servidas com doce de casca de laranja.
O meu avô quase nunca estava presente nessas visitas e a minha avó, por vezes, saía para passear pelo jardim onde colhia folhas e ramos. Eu ficava ali, com a minha tia, ouvindo as histórias de netos e vizinhos que Olina benzia e atendia por vocação. Ela foi a última das grandes benzedeiras da cidade e, às vezes, não conseguia ouvi-la direito. Não que fosse desinteressante, pelo contrário: nossas visitas eram um mergulho em uma espécie de transe observatório. Era preciso permitir a si próprio orbitar entre os muitos pontos de atração que havia ali.
A sala de estar, por exemplo, ostentava uma colagem extensa e multicolor que, eu descobriria muitos anos depois, lembrava e muito o Atlas de Mnemosyne, feito pelo historiador alemão Aby Warburg.
Embora tenha sido a mulher mais católica apostólica romana que já conheci na vida, com uma devoção quase dolorosa aos ritos e ao calendário da Igreja, a decoração de sua casa era um tanto ortodoxa. Quase não havia ali imagens talhadas em pedra e gesso, comuns em outros cantos. Havia, sim, incontáveis fotografias e pinturas de santos que ornavam a parede traseira da sala, desde o teto até a altura da cintura.
Além do crânio de uma onça que jazia pendurado à esquerda, destoando dessa paisagem imaculada, cânones de todos os tipos e origens observavam os transeuntes que se dirigiam à cozinha e, cinco passos adiante, ao alpendre. Aquilo fascinava meninos curiosos e que adoravam inventar histórias como eu.
Lembro de perguntar algumas vezes quem eram determinadas figuras que, por algum traço ou adorno, chamavam a minha atenção. Entusiasmada, ela respondia contando quando e onde havia conseguido as fotografias. Muitas vezes, elas eram presentes comprados em viagens pelo Brasil e, em menor proporção, pelo mundo. Já adulto, acabei por me dar conta de que metade dos onze filhos que ela teve com meu bisavô José Caetano acabou batizada com nome de santo. Os gêmeos Sebastião e Maria, Manoel, Brás, Divino e João Batista, em ordem decrescente.
Pouco antes de Olina morrer, soube que ela perguntou por mim. Não achava que, entre tantas coisas possíveis, ela fosse se lembrar da criança crescida que já não lia mais orações. Não sei se ela foi uma boa mãe, ou mesmo uma avó afetuosa, que se permitia o luxo de abraçar os netos. Mas esse gesto fez com que nunca mais eu me esquecesse da textura de seu vestido lilás com estampas de flor, feito com algodão. Ainda consigo ver pelas costas os longos cabelos brancos, quase amarelados pela passagem do tempo, que diariamente eram presos em um coque.
Não cheguei a vê-la em despedida. Foi a primeira pessoa morta de quem recusei uma aproximação porque queria uma imagem relicário.
Durante anos, encontrei-a nas ruas e nos livros. Inconscientemente e sem qualquer lógica relacional, percebi que imaginava seu rosto em personagens de contos, romances, novelas. A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada, extraordinário conto de Gabriel García Márquez, é um desses exemplos. Ela também foi a figura que inspirou a avó de coisas que escrevi, mas nunca publiquei. Quando fecho os olhos e escuto “São João, Menino Xangô”, Olina também aparece. Às vezes, ouço até mesmo o barulho dos fogos.
Eram grandiosas as festas de São João que ela fazia no dia 24 de junho. Reuniões que deixavam a família, os amigos e os vizinhos apertados na mesma sala dos santos, onde se rezava o terço duas vezes e depois se fartava com pipoca, paçoca e pastel. Presenciei essa celebração por exatos 20 anos e soube, no último deles, que a tradição veio do próprio pai, também um homem devoto.
Aos filhos, a herança não foi dada. A estes, cabia apenas duas coisas: a montagem da fogueira, que seria utilizada depois para o batismo das crianças; e o silêncio, na primeira hora do dia, quando ela imergia na superstição de tentar encontrar a própria sombra em uma bacia de alumínio. Os antigos diziam que se você a visse poderia viver por mais um ano.
No último deles, Olina permaneceu em silêncio. Contam que ninguém se atreveu a perguntá-la, às portas de completar 89 anos, o que tinha aparecido. Ao ouvir uma voz que a chamava no portão, ela simplesmente sorriu como uma criança peralta que, finalmente, consegue estourar sua pinhata.
Un sonido para hoy
¡Fíjese!
Quero tornar malasartes cada vez mais um espaço de compartilhamento, tenho pensado meios de organizar esse desejo. Por ora, o boletim apresenta para você uma descoberta que fiz recentemente durante as muitas horas que perdemos na rede ao lado. O perfil Lima Antigua é extraordinário! A página se dedica a resgatar fotografias históricas e também ao registro da sobrevivência arquitetônica desta que é uma das cidades mais belas e antigas da América Latina.
Nem sempre há contextualização história ou grandes detalhes a respeito das fotos, mas vale a pena acompanhar não apenas para fortalecer um trabalho de preservação e curadoria, como também descobrir novos lugares.
Adotei o texto um pouco mais longo, Gui. Essas histórias de família mexem muito comigo. As despedidas são doídas, mas ainda bem que temos as memórias. Obrigada por compartilhar!